13 setembro 2016

Cegueira do Real

A peça "Boubouroche" (1893) de Georges Courteline, reportada no livro O Real e seu Duplo, de Rosset, é um exemplo da cegueira do real, da ilusão. 

Resumo da peça: Boubouroche instalou a sua amante, Adèle, em um pequeno apartamento. Um vizinho de andar de Adèle previne caridosamente da traição quotidiana de que é vítima este último: Adèle partilha o seu apartamento com um jovem namorado que se esconde num armário toda vez que Boubouroche visita sua amante. Louco de raiva Boubouroche irrompe numa hora inabitual e descobre o amante no armário. Cólera de Boubouroche, à qual Adèle responde com um silêncio desgostoso e indignado: "Você é tão vulgar", declara ao seu protetor, "que não merece nem a mais simples explicação que logo teria dado a outro, se ele tivesse sido menos grosseiro. É melhor nos separarmos". Boubouroche admite os seus erros e perdoa Adèle. Moral da história: Boubouroche, mesmo desfrutando de uma visão correta dos acontecimentos, mesmo tendo surpreendido o seu rival no esconderijo, continua a acreditar na inocência da sua amante.

Reflexão de Rosset:

Imaginemo-nos apressados num volante, quando surge o sinal vermelho. Ao esperarmos o sinal verde, estamos aceitando o real. Por outro lado, podemos ignorar o sinal vermelho e continuarmos o nosso caminho. Este ato assemelha-se ao Édipo furando os próprios olhos. Isso também pode causar dano à nossa consciência, levando-nos ao suicídio. Há, ainda, um outro modo de atuar: percebemos que o sinal está vermelho, mas concluímos que é a nossa vez de passar.

O raciocínio que tranquiliza pode ser expresso da seguinte forma: "Há um rapaz no armário — logo Adèle é inocente, e eu não sou cornudo". Esta é, na verdade, a estrutura fundamental da ilusão: uma arte de perceber com exatidão, mas de ignorar a consequência. 

A técnica geral da ilusão é transformar uma coisa em duas, exatamente como a técnica do ilusionista, que conta com o mesmo efeito de deslocamento e da duplicação da parte do espectador: enquanto ocupa com a coisa, dirige o seu olhar para outro lugar, para lá onde nada acontece. Como Adèle para Boubouroche: "É bem verdade que há um homem no armário — mas olhe para o lado, ali, como amo você". 

Diz-nos que aceitamos o real, mas quando o nível de tolerância é suspenso, já não o queremos mais ver. Daí partirmos para uma recusa do real.

ROSSET, Clément. O Real e seu Duplo: Ensaio sobre a Ilusão. Tradução de José Thomaz Brum. Porto Alegre, RS: L&PM, 1976. 

 


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